Na seção Bravo! da CartaCapital nº 512, foi brevemente comentada a coletânea crítica O Vampiro antes de Drácula (Aleph, R$ 46, 336 págs.), organizada
pela escritora Martha Argel e pelo tradutor Humberto Moura Neto, mas o
livro e o assunto merecem comentários adicionais.
Como foi dito ali, a história principia no século XVIII. As mais
antigas mitologias citam seres mais ou menos vampirescos, como os lilu
e as lili ou lilitu dos sumérios, as lâmias dos gregos e as estriges
dos romanos. Mas a concepção e o nome dos vampiros propriamente ditos
da tradição literária ocidental provêm especificamente do folclore
sérvio (de cuja língua provém a palavra vampir) e até fins do século XVII era pouco conhecidos fora da cultura eslava.
De 1718 a 1739, porém, o coração da Sérvia ficou sob domínio dos
Habsburgos da Áustria e a lenda eslava chamou a atenção de ouvidos
ocidentais. Duas mortandades em 1725 e uma terceira em 1731 foram
atribuídas a vampiros e esta última levou o governo austríaco a enviar
uma comissão de médicos e militares para investigar o assunto. Com uma
mentalidade ainda mais barroca do que iluminista, os médicos acabaram
confirmando a condição vampírica de vários corpos exumados, que foram
decapitados e queimados, tendo suas cinzas lançadas no rio Morava.
Supunha-se que os vampiros eram mortos-vivos que saíam à noite de
seus túmulos para sugar o sangue de vítimas que, ao morrerem, se
tornavam como eles, deflagrando uma epidemia. Nessa concepção, o
vampiro – mais freqüentemente, o cadáver de um pobre camponês – era um
ser repugnante, um cadáver de unhas compridas, boca aberta, barba
malfeita e rosto vermelho e inchado, envolto numa mortalha.
Corpos aparentemente conservados quando deveriam ter apodrecido, de
aparência roliça e saudável, com a boca ensangüentada, confirmavam o
diagnóstico de vampirismo. Na verdade, a temperatura e as
características do solo permitiam a preservação de cadáveres por mais
tempo que o habitual, o inchaço do corpo por gases da decomposição
davam a impressão de que o morto “engordara”. Junto com o vazamento de
líquidos de decomposição misturados com sangue pela boca, davam conta
da aparência impressionante desses cadáveres. Ao se despachar o vampiro
de acordo com a tradição, decapitando-os ou trespassando-os com uma
estaca, os gases que inchavam o corpo eram liberados, com um som que
dava a impressão de que o cadáver gemia e gritava, ao mesmo tempo que
revertia ao tamanho normal.
Em 1746, o beneditino francês Augustin Calmet
– uma espécie de Padre Quevedo de sua época – escreveu uma dissertação
a respeito do tema no qual rejeitava vários dos supostos casos, mas
admitia que alguns podiam ser reais e teve grande impacto na
intelectualidade européia. Já em meados do século XVIII, porém, as
mentalidades na Europa Ocidental já evoluíam na direção do iluminismo.
Em 1755, quando uma suposta vampira foi exumada na fronteira da Silésia
com a Morávia, no Império Austro-Húngaro, a Imperatriz Maria Teresa –
uma das clássicas “déspotas esclarecidas” – encarregou seu médico, o
holandês Gerard van Swieten, de investigar o caso a fundo.
Esse precursor de Van Helsing
concluiu que tudo não passava de histeria popular e seu relatório levou
à proibição da decapitação e do estaqueamento de cadáveres nos domínios
habsburgos. Além disso, foi retirada dos párocos a autorização para
lidar com tais questões, transferidas para a responsabilidade do
governo.
Mas a polêmica já tinha excitado a imaginação dos escritores. Em 1748 o alemão Heinrich August Ossenfelder publicou um poema chamado O Vampiro
com esse tema, seguido por vários outros até o início do século XIX.
Curiosamente, já em de Ossenfelder aparece o tema do erotismo,
explicitamente associado a algumas entidades vampíricas da Antiguidade
mas não às da lenda eslava – nesta, os vampiros inspiravam pesadelos,
terrores noturnos e sensação de sufocação e “peso no peito”. No poema,
um amante rejeitado por uma jovem piedosa e respeitável ameaça
visitá-la à noite, beber-lhe o sangue como vampiro e provar-lhe que
seus ensinamentos são melhores que os da mãe.
Vale notar que é nesse período, em 1766, que a idéia de vampiro foi
associada pela primeira vez ao morcego. Na Europa, nunca existiram
morcegos hematófagos: essa espécie está confinada à América do Sul.
Supunha-se que as lâmias podiam tomar forma de serpentes, as estriges
de corujas e o vampiro na Europa Oriental às vezes se confundia com a
figura do lobisomem, mas jamais com o morcego. Foi o naturalista Buffon que, ao se referir ao morcego hematófago sul-americano, chamou-o de “vampiro”.
Do
repugnante cadáver ambulante do folclore eslavo, camponês de barba
malfeita, boca aberta e rosto inchado, John Polidori, fez do vampiro um
aristocrata sombrio, ambivalente, romântico e sedutor à imagem e
semelhança de Lord Byron, de quem era secretário e médico. O visual do
vampiro estava lançado e até hoje não nos deixou. O retrato de Byron
acima é de Thomas Phillips (1814).
Em 1797, Goethe publicou outro poema vampírico digno de nota, A Noiva de Corinto,
no qual uma jovem, tendo morrido virgem por exigência da mãe convertida
ao cristianismo, saía do túmulo a cada noite para seduzir os jovens e
sugar seu sangue e que lhe pedia para ser queimada em uma pira com seu
amado, para que pudesse partir para junto dos antigos deuses.
Tratava-se de uma adaptação de uma narrativa do grego antigo
Filóstrato, embora neste não houvesse a temática religiosa – neste, a
lâmia era uma criatura demoníaca, exorcizada por um sábio mago pagão.
Os vampiros chegaram à literatura em prosa em 1816. No mesmo desafio entre amigos no qual Mary Shelley criou Frankestein, o colega Lord Byron esboçou um conto vampiresco. Outro participante, seu médico e secretário John Polidori (que escrevera outro conto, hoje perdido) desenvolveu a história incompleta e a publicou como O Vampiro,
depois de romper com o ex-patrão, que ridicularizava sua pretensão de
portar-se como um intelectual romântico. Numa aparente vingança, o
vampiro de Polidori, Lord Ruthven, era um aristocrata sombrio,
ambivalente, romântico e sedutor à imagem e semelhança da persona de Byron.
Ironicamente, o editor da New Monthly Magazine, ao qual o
manuscrito foi mostrado por uma amiga comum, publicou seu conto como
sendo do próprio Byron, por engano ou para tirar proveito de sua fama.
Tanto Byron quanto Polidori ficaram bastante irritados, mas não
conseguiram desfazer o equívoco. Por décadas, o nome do grande poeta do
romantismo ajudou a difundir e prestigiar o primeiro conto de vampiro
por toda a Europa. A mania estava lançada e até hoje não nos deixou.
Não foi à toa que Byron se aborreceu com a atribuição da autoria.
Embora o tema fosse inédito e provocativo, do ponto de vista da técnica
literária, o conto de Polidori
– no qual o vampiro se compraz a provocar a ruína e perdição dos homens
e a sedução e morte de belas virgens, inclusive a amada e a angelical
irmã do narrador – está abaixo de medíocre. Certamente é o mais fraco
da coletânea, embora sua importância para a história do tema o torna
indispensável.
Todos os outros contos reunidos em O Vampiro antes de Drácula,
por outro lado, vão de bons a geniais, reunindo exemplos de vampiros
masculinos e femininos, heterossexuais e homossexuais, animais e
vegetais, carnais e espirituais, humanos e pós-humanos. Edgar Allan Poe, Alexandre DumasGuy de Maupassant, Alexei Tolstoi, Anne Crawford, Arthur Quiller-Couch, Phil Robinson, Eric Stenbock e H. G. Wells mostram
claramente a influência do vampiro pseudo-byroniano e de sua
contrapartida feminina, a femme fatale, sob as formas mais variadas.
A temática erótica está presente na maioria das histórias – as exceções
são o vampiro vegetal de Wells, o vampiro animal de Robinson e o
misterioso Horla de Maupassant – mas um fator ainda mais constante (com
exceção de Poe) é que o vampiro vem quase sempre de algum lugar mais
primitivo e selvagem que a pátria dos protagonistas, geralmente a
pragmática e esclarecida Inglaterra ou a França iluminista. Não é
obrigatório que o vampiro venha da sua verdadeira terra de origem na
Europa Oriental: pode vir da Grécia, da Itália, ou dos trópicos. A bela
orquídea de Wells vem do sudeste Asiático, o vampiro de Robinson,
enorme pterossauro que suga sangue à maneira dos morcegos
sul-americanos, vem da Amazônia peruana e o Horla vem do Brasil, mais
precisamente da província de São Paulo. pai,
Este último é talvez o mais estranho e atípico da antologia,
mas ainda assim pertence claramente à mesma temática. Na versão mais
conhecida, o conto toma a forma de um diário da vítima do Horla, de uma
maneira a deixar o leitor na incerteza sobre se trata de loucura, de
uma doença tropical contraída pelo narrador ou de um ser misterioso.
Mas a coletânea optou por uma mais versão raramente traduzida dessa
obra de Maupassant, anterior e mais curta, na qual a história é narrada
do ponto de vista de um médico que cuida do suposto doente e acaba por
concluir que ele tem razão.
Essa versão tem menos ambigüidade fantástica para se aproximar da
ficção científica – trata-se mesmo de um humanóide invisível mas
material, superior ao ser humano, que de alguma maneira emergiu
espontaneamente da evolução em uma natureza exótica e tropical para
tomar o lugar da velha humanidade e destruí-la. Por que do Brasil?
Talvez porque já fosse visto como o país do futuro e também de uma
terra, paradoxal, tanto de maravilhas naturais quanto do horror da
escravidão e das doenças tropicais.
Embora não pareça ser particularmente atraído por belas donzelas, o
Horla – cujo nome provavelmente deriva do francês hors la (“lá fora”) é
fascinado por tudo o que é branco, belo e inocente. Bebe leite e água,
devora rosas brancas, aparentemente dirige-se para a casa do narrador
porque é branca e (na segunda versão) o navio brasileiro no qual é
levado à França é branco e especialmente alegre e bonito, a ponto de
entusiasmar o narrador.
Antes de ser um sugador de sangue ou de qualquer forma de energia
vital, o vampiro é um ser ambíguo – entre a vida e a morte, entre o
humano e o animal, entre o belo e o horrendo, entre o passado e o
futuro. Não é obrigatoriamente erótico, mas tem o vigor do primitivo,
que pela sensualidade ou pela força superior ameaça a frágil
civilização e as convicções morais e religiosas do Ocidente.
O último conto da coletânea, O Convidado de Drácula, escrito na década de 1890, mas publicado apenas em 1914, é do próprio Bram Stoker.
Nele, ao que tudo indica, o mais famoso dos vampiros apareceu pela
primeira vez – antes do famoso romance de 1897, ao qual poderia servir
de prólogo.
Com o Drácula de 1897, o tema que parecia já estar
desgastado e caindo no ridículo ou no esquecimento, tomou novo impulso
– a ponto de que muitos fãs de histórias de vampiros de hoje têm a
impressão de que Stoker
foi o primeiro a introduzi-las na literatura. A novidade em relação aos
anteriores é que, por um lado, o vampiro torna-se muito mais poderoso:
forte como vinte homens, mais ardiloso que os mortais, capaz de
comandar os mortos, os animais e a metereologia, tomar inúmeras formas
e ficar invisível. Por outro, seus inimigos reúnem todos os recursos da
modernidade para combatê-lo, incluindo transfusões de sangue,
fonógrafo, taquigrafia e psiquiatria.
Não ficam embasbacados, mas agem com estratégia, valendo-se da
ciência de Van Helsing. Por seu lado, Drácula, ao contrário dos
vampiros românticos, não mata por fúria, prazer ou capricho, mas para
se apoderar das vítimas e colocá-las a seu serviço. Age também como um
planejador, reunindo vastas fortunas para realizar seu plano de domínio
mundial.
Das histórias da coletânea, só na do popularesco Dumas, preocupado
com a aceitação da história pelo grande público apesar do apelo
erótico, a religião tinha um papel vital na derrota do vampiro: nas
demais, o mal era vitorioso ou sua derrota era fruto da bravura
inspirada pela razão. No Drácula de Stoker, porém, fica explícito que o propósito do vampiro é dominar Londres, o british way of life está
em risco e todos os seus recursos morais, religiosos e científicos de
sua civilização são convocados a enfrentar o perigo, no qual se
confundem a emancipação da mulher (as pacatas vitorianas mordidas por
Drácula tornam-se ferozes dominadoras), a ameaça da sensualidade
primitiva e a ameaça das novas potências que emergiam da Europa
Continental, colocando em risco a hegemonia britânica. Apesar da
aparência de aristocrada John Seward, psiquiatra aliado de Van Helsing,
refere-se ao vampiro como “o pai ou promotor de uma nova ordem das
coisas”. No vampiro, o medo do futuro escondeu-se sob a máscara do
passado.
Graças à ênfase na ação, aos golpes de efeito e à economia de
personagens e cenários – Stoker escrevia como se pensasse em uma peça
de teatro – Drácula tornou-se, como conclui a coletânea, eminentemente
filmável. Embora o autor não vivesse para ver isso, os filmes baseados
em sua obra conquistaram o mundo a partir dos anos 20 e fixaram a
imagem do vampiro no imaginário ocidental até os anos 80, quando Anne
Rice deu à lenda um novo retoque. Mas isso já é outra história.
>> CARTA CAPITAL- por Antonio Luiz M. C. Costa